Preto, pobre e presidiário: o Joseph K. da pós-modernidade

Noite do último dia 10, bairro de engenho de Dentro, Zona Norte do Rio de Janeiro. Um homem de pele preta e cabelo black power,  vestido apenas com uma bermuda, se aproxima de um ponto de ônibus e ataca sorrateiramente  uma senhora indefesa, roubando-lhe a bolsa,  dez reais em dinheiro e um bilhete único.

viniiicus

Um investigador da Polícia Civil tenta ajudar a vítima, a copeira Dalva da Costa. Ambos saem pelas ruas das imediações à procura do assaltante. Não demora e um homem é identificado como autor do furto. Ninguém repara que ele veste calça e camisa preta, e não uma bermuda. Vem a polícia e o suspeito acaba preso.

Na delegacia, descobre-se que o suposto assaltante se chama Vinícius Romão de Souza, tem 27  anos. Ele diz que é psicólogo e afirma que trabalha em novelas da Rede Globo, mas ninguém lhe dá atenção. Nega com veemência que tenha cometido o crime, mas novamente ninguém lhe dá atenção.

A vítima titubeia: não tem mais certeza de que aquele é o homem que levou sua bolsa. No dia seguinte, pensa em voltar ao distrito policial para desfazer o equívoco. Mas, sem dinheiro para a condução, Dona Dalva decide aplacar sua culpa em casa mesmo. O episódio não chega a lhe provocar nenhum remorso.

Do nada, mensagens de apoio ao suposto ladrão começam a pipocar nas redes sociais. Trancafiado no presídio de São Gonçalo, o suspeito vê dez dias se passarem antes que o ‘mal entendido’ seja desfeito. Pobre do País em que um homem inocente demora dez dias para deixar o cárcere!

A prisão do ator global desvela uma vez mais a influência do vetor racial na consumação de prisões. O Brasil, como estão a demonstrar todas as estatísticas sobre a população carcerária, ainda é um País que põe na cadeia quase que exlusivamente pretos, pobres e putas. 

No Rio de Janeiro, onde os não-brancos representam 41,3% da população, 80,9% da população carcerária são negros ou pardos, segundo a última PNAD do IBGE. Ou seja: há duas vezes mais negros entre os presidiários do que na população em geral. A maior parte dos detentos foi apenada por traficar pequenas quantidades de drogas. Quase 70 %, ao entrarem no sistema prisional, não tinham condenação anterior, eram réus primários. E só 1,8% —  menos de dois em cada 100 — tinham relação com o crime organizado.

Só esses dados já seriam suficientes para demonstrar que a cor da pele funciona como um elemento indiciário para os que não são brancos nem têm olhos claros. Mas eles não bastam para dimensionar histórica e politicamente esse fenômeno de segregação. E, acredite, algumas das causas estão entranhadas no bojo da nossa legislação penal até os dias de hoje.

Tome-se como exemplo a Lei 11.343/2006, que estabelece a política nacional para as drogas. O Artigo 28, no capítulo que trata da penas para o crime de tráfico, prescreve o seguinte: 

Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

O que vêm a ser “circunstâncias sociais e pessoais” senão a descrição étnica e a situação econômica do suspeito de traficar drogas ?

“É o apartheid dentro da nossa legislação”, diz o senador Antônio Carlos Valladares, (PSB/SE). Ele é o relator do PLC 37/2013 na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Esse projeto, de autoria do deputado Osmar Terra,  já foi votado e aprovado pela Câmara antes de chegar às mãos do senador senador sergipano. Deve ser discutido pela CCJ ainda este semestre.

Como está, o projeto representa um recrudescimento da política repressiva para as drogas. A proposta caminha na direção oposta à das medidas liberalizantes que varrem o planeta. O novo relator critica:  “Precisamos banir essas duas palavras do texto porque elas servem como uma faca no pescoço de legiões de jovens negros e pobres”, diz Valladares.

Já não era sem tempo. Em relação ao comércio de drogas, o crime que mais leva gente para dentro do sistema penitenciário nos dias de hoje no Brasil, a discriminação racial está presente na legislação desde a Independência. A primeira lei coibindo o consumo e a venda de maconha data de 1830. É um decreto da Câmara de Veradores do Rio de Janeiro que emendou o código de posturas da cidade. A norma ficou conhecida como Lei do Pito de Pango e estabelecia o seguinte: 

“É proibida a venda e o uso do pito do pango, bem como a conservação dele em casas públicas. Os contraventores serão multados, a saber: o vendedor em 20$000, e os escravos e mais pessoas, que dele usarem, em três dias de cadeia.”

Ou seja: consumidores negros (escravos) pagam a contravenção com a liberdade; os comerciantes, brancos, recolhem uma multa de vinte mil réis, ridícula para os padrões da época.

Por isso tudo, o episódio envolvendo o ator Vinícius Romão de Souza é muito mais grave do que aparenta ser. Vítima de uma situação em que qualquer preto preso é melhor do que nenhum preso, ele foi vítima antes do racismo. E depois, de um equívoco que jamais teria acontecido se ele fosse loiro ou tivesse a pele clara.

Ainda assim, pode-se inferir que a gravidade poderia ter sido muito maior. Todos os dias, ‘suspeitos’ como Vinícius são detidos injustamente, apanham da polícia e, quando têm sorte,  são amarrados a postes ou levados para o calabouço. Lá, misturam-se com a multidão e purgam penas longuíssimas para quem não fez nada, ou fez muito pouco.

Quando dão azar, são executados na via pública por policiais que dizem ter ‘trocado tiros com o tráfico’ ou por milicianos mascarados que assomam na periferia das metrópoles. Isso poderia ter acontecido a Vinícius, assim como acontece a dezenas de jovens negros todos os dias no País. Felizmente não aconteceu.

O sofrimento moral do ator da Globo, no entanto, não pode ser desperdiçado apenas com uma comoção passageira e vazia. Passou da hora de revermos a legislação para amputar dela dispositivos discricionários que ainda estão em vigor. Há muito o que fazer também em relação ao comportamento do policial. A conduta na rua não deve lhe facultar o direito a uma certa subjetividade na escolha de quem será trata do como suspeito, quem não será molestado, a partir da cor da pele.

Ou o Brasil ataca o problema e trata de encará-lo com a devida seriedade, ou estaremos sempre sujeitos a um surto de indignação por ‘erros’ se repetem todo santo dia na rotina dos distritos policiais, onde desfilam Joseph K’s de pele preta cujo único crime foi o de terem chegado ao mundo como descendentes de escravos africanos.

Um bom vídeo da marcha da maconha para fazer você pensar: baseado em quê ?

 

O tema é tão polêmico que  não conheço um só vivente que não tenha opinião formada a respeito: a descriminalização da maconha. O editor deste blog também tem a sua própria opinião: é a favor da descriminalização da maconha para qualquer fim. Agora chega de falar de mim mesmo na terceira pessoa.

Em respeito aos que divergem de mim, aceito todas as opiniões como legítimas. Até mesmo aquelas em que se pode  identificar claramente a carga de preconceitos, produto de uma campanha intensa de desinformação que já dura mais de 80 anos. 

Conheci outro dia uma senhora cujo filho tem esclerose múltipla. Há 15 anos ele usa a maconha para aliviar as dores e se manter a saudável. Quinze anos. Essa senhora diz ter consciência de  que o filho só está vivo, bem de saúde e produtivo por causa da erva. Mas nem isso faz com que ela aceite o fato de o filho ser um maconheiro.

Os organizadores da Marcha da Maconha produziram um bom vídeo onde alinhavam seus argumentos. Quem é a favor, como eu, vai encontrar ali motivos para reafirmar suas crenças. Mas quem é contra talvez também consiga extrair elementos para fortalecer sua posição.

De um jeito ou de outro, vale a pena assistir.  O debate vai esquentar nos próximos dias, quando a Comissão de Constituição e Justiça votar o substitutivo do senador sergipano Antônio Carlos Valadares (PSB) ao projeto do deputado Osmar Terra (Solidariedade).

É bom você estar afiado para defender o seu ponto-de-vista.