Desmatamento na Amazônia, por Luiz Carlos Baldicero Molion, PhD

A afirmação de que as secas da Região Sudeste estão sendo causadas pelo desmatamento da Amazônia é leviana, não tem base científica, pois não sobrevive a uma análise de dados climáticos, além de ser contrária ao bom senso. A anomalia climática pela qual São Paulo está passando é decorrente da variabilidade natural do clima e já ocorreu, até com intensidade maior, no passado.

O gráfico abaixo representa a variação dos desvios de precipitação padronizados para a Estação da Luz, no centro da capital paulista, que tem dados observados de chuva desde 1888. Nesse gráfico, notam-se desvios fortemente negativos em anos como 1933 e 1936, e na década dos anos 1960, como 1963, 1968 e 1969. Séries de precipitação mais curtas, a partir dos anos 1950, também registram as secas da década de 1960 que afetou a Região Sudeste. Ou seja, a Região já esteve submetida a secas severas no passado quando o desmatamento da Amazônia era incipiente.

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A floresta está lá porque as condições climáticas globais, notadamente o transporte de umidade vindo do Oceano Atlântico Norte, criam as condições propícias para que ela exista. É claro que, após a instalação da floresta, há complexos mecanismos de interação floresta-atmosfera que tornam o clima local mais úmido. Antes do soerguimento dos Andes a 70 milhões de anos atrás, a floresta não existia como ela é vista hoje. E no pico da última era glacial, há 15 mil anos, há evidências que também não existia uma floresta extensa e contínua, mas apenas algumas “ilhas de vegetação” ou “refúgios” na denominação de Aziz Ab’Saber e Paulo Vanzolini. Portanto, é o clima global atual que permite a existência da floresta extensa e contínua, como observada modernamente, e não o contrário!

A umidade para as chuvas do Sudeste não é produzida na Amazônia. Ela vem do Oceano Atlântico Norte e, notem, apenas passa sobre a Amazônia e interage com a floresta. Como essa floresta produz atrito ao escoamento do ar que sai do oceano [como um carrinho elétrico que passa da cerâmica (superfície lisa) para cima de um tapete (superfície rugoso)], essa rugosidade cria intensa turbulência vertical e nuvens convectivas que convertem mais eficientemente parte da umidade transportada pelos ventos em chuva. O restante do fluxo de umidade oceânica segue seu caminho para fora da Região. Afirmação que “uma árvore cuja copa tenha 10 metros de raio, fornece mil litros de água por dia para a atmosfera”, tem o objetivo de sensibilizar o público leigo e usa, de forma inadvertida, resultados, por exemplo, obtidos no Experimento Micrometeorológico na Amazônia (ARME), organizado e dirigido por nós na década dos anos 1980 na Amazônia Central próximo a Manaus.

No ARME, concluímos que a evapotranspiração [evaporação + transpiração da vegetação] injetava na atmosfera 3,4 mm por dia, ou 3,4 litros de água por metro quadrado por dia [l/m2/d], um número bem inferior ao que era tido como verdadeiro na época. Ora, um círculo de 10 metros de raio possui uma área de cerca de 300 metros quadrados que, multiplicada pela taxa de evapotranspiração acima, de 3,4 l/m2/d, resulta em 1000 litros por dia. A pergunta que cabe aqui é de onde essa tal árvore retirou a umidade que está transferindo para a atmosfera? E a resposta óbvia é “a umidade foi retirada da chuva que se infiltrou no solo”. Sabe-se que 98% a 99% da umidade que a vegetação retira do solo são utilizados apenas para manter baixa a temperatura de sua folhagem por meio do processo físico de vaporização da água, que consome grandes quantidades de energia solar e refrigera a folhagem.

Se a evaporação não ocorresse, a temperatura da folhagem poderia atingir valores superiores a 34°C – 35°C e danificaria os tecidos da folhagem severamente, ou seja, a floreta não sobreviveria. Portanto, apenas 1% a 2% da água retirada do solo ficam incorporados nas árvores. A floresta não é fonte de umidade, ela é apenas um transdutor da água da chuva, que é derivada do fluxo de umidade oceânica transportado pelos ventos para dentro do continente. A floresta recicla 98% a 99% da água da chuva, devolvendo-a para o escoamento atmosférico que a transporta para outras regiões do país.

Na eventual hipótese absurda de se desmatar completamente a Amazônia, a rugosidade da floresta deixaria de existir, choveria menos na Amazônia e, pode se dizer, um fluxo de umidade um pouquinho maior do que o atual seria transportado para o Sudeste, possivelmente aumentando suas chuvas.

É fato observado e incontestável que áreas dentro da própria Amazônia e ao sul da mesma apresentam uma estação seca bem definida ao longo do ano. No Centro Oeste e Sudeste, por exemplo, a estação seca chega a ser de seis meses, notadamente entre abril e setembro.

Por que não chove nessas regiões se a floresta está em pleno funcionamento e transferindo umidade para o ar? É porque o clima global não permite a umidade existente na superfície seja convertida em chuva regionalmente. Durante a estação seca, e em anos de seca, essas regiões estão sobre o domínio de um sistema de alta pressão atmosférica de milhares de quilômetros de extensão e a inversão térmica associada a ele e existente a cerca de 2 km de altura, inibe a formação e o desenvolvimento de nuvens de chuva.

Além do ciclo anual, o clima do Brasil apresenta variabilidade interanual decorrente de fenômenos de escala global como os eventos El Niño que, afirma-se, produzem secas severas sobre a Amazônia, mesmo com toda umidade que, em princípio, seria fornecida pela floresta. Em adição, existe uma variabilidade climática na escala decadal resultante da variabilidade da temperatura da superfície (TSM) dos Oceanos Pacífico e Atlântico que, juntos, ocupam 54% da superfície do planeta.

Durante o período que o Pacífico Tropical ficou, em média, ligeiramente mais frio, entre 1946 e 1976, chovia 10% a 20% a menos no país de maneira geral. Isso porque a atmosfera [e, como consequência, o clima] é aquecida por baixo, o ar se aquece em contato com a superfície. Se as TSM ficam mais frias, o clima também se resfria, a evaporação dos oceanos se reduz, o transporte do fluxo de umidade para cima dos continentes é diminuído e uma atmosfera mais fria e mais seca produz menos chuva na região tropical.

A partir de 1999, o Pacífico começou a se resfriar e o estado energético do clima parece estar semelhante ao do período 1946-1976 quando o Pacífico se resfriou e, portanto, mais baixo que o do período 1976-1998 recém-passado, em que o pacífico estava mais aquecido e o estado energético do clima era mais elevado e chovia mais. Admitindo que o ciclo de resfriamento/aquecimento do Pacífico seja de 50-60 anos, conforme publicado na literatura especializada, o Pacífico deve permanecer, em média, ligeiramente mais frio até os anos 2025-2030.

Sob considerações meramente baseadas na dinâmica do clima global observada ao longo dos últimos 100 anos, se este se assemelhar ao período frio passado [1946-1976], as chuvas devem se reduzir em todo país, notadamente no Sudeste e Centro Oeste, independentemente de se acabar com o desmatamento e recuperar as áreas degradadas na Amazônia. Não queremos dizer, com isso, que somos favoráveis ao desmatamento na Amazônia. Muito pelo contrário, somos contra o desmatamento da Amazônia, em função da fantástica biodiversidade nela existente e dos serviços ambientais por ela prestados à sociedade. E os produtores rurais da Amazônia tem plena consciência disso.

*Luiz Carlos Baldicero Molion é meteorologista brasileiro, professor e pesquisador da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), PhD em Meteorologia e pós-doutor em Hidrologia de Florestas. Conhecido como “o cientista que não se curva aos ambientalistas radicais” 1 é também representante dos países da América do Sul na Comissão de Climatologia da Organização Meteorológica Mundial (OMM)

É defensor da polêmica tese de que o homem e suas emissões na atmosfera são incapazes de causar um aquecimento global.

 

Política não é futebol, por Victoria Pannunzio

Por Victoria Pannunzio *

Tá certo que no sangue brasileiro corre toda aquela competitividade, a vontade de chegar ao trabalho no dia seguinte e dizer “chupa, fulano, seu time perdeu!”… Quem não se acostumou? Quem nunca chamou de freguês, fracote, sofredor, ladrão? “Pega a bola, imbecil!” “Só pode ser burro!” “Alguém tira esse poste de campo?” “Aôoooo juiz!”. Futebol é religião e certamente tem como linguagem a ofensa, afinal, qual a primeira qualidade que te vem na cabeça ao lembrar da mãe daquele juiz que não deu falta pro time adversário? Passa um dia, dois dias, e ainda fazem aquela piadinha de mal gosto quando você tá no rebaixamento…

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Na política não é bem assim… Não se comemora a derrota do rival no dia seguinte com os amigos, não se assiste num bar gritando se seu candidato vai mal, não se estampa o nome na camisa, não comemora a vitória daquela lei que vai fazer bem pro país, e o mais importante: não se torce contra o rival. “Construiu um porto em Cuba. Tira essa mulher de campo!” “E o aeroporto para o tio? Ainda bem, assim não joga no próximo jogo” “escândalo da Petrobrás? Tem que acontecer de novo pra o eleitor perceber!”

Não, parceiro, não é bem assim que funciona. Seu candidato perdeu, e eu sinto muitíssimo por você, mas não é certo torcer para tudo ir mal no mandato de quem ganhou. A diferença é que quando você seca o time daquele seu colega que te enche o saco, se o time dele perder, o seu é quem vai se dar bem. Na política, se o time do outro se der mal, você se dá mal também.

Vamos pensar assim, o nosso país é um time de futebol. Os senadores, ministros, deputados e todo o resto são os jogadores, e eu e você somos os torcedores. Os jogadores nunca vão entrar no time sem motivo. Acredite na teoria que quiser, mas te garanto que ninguém é escolhido para governar sem nenhum voto. Bom, eu e você ficamos ali na arquibancada esperando pra ver o que vai acontecer.

O presidente é o técnico do nosso time. Todo torcedor sabe que nem sempre o técnico é o preferido de todo mundo, e que tá cheio de torcedor esperando para aquele “cruza-braços” sair logo e entrar um, quem sabe, melhor. E que quando isso acontece, é melhor cruzar os dedos e esperar que o novo seja bom de verdade. E todo mundo sabe também que a culpa nem sempre é toda do técnico, ás vezes os jogadores também não querem jogar. Ás vezes é o técnico mesmo, fazer o que, né? Nesse caso, ou melhora o serviço, ou vaza. Simples assim no futebol.

A verdade é que mesmo que os jogadores e o técnico sejam ruins, o torcedor nunca pode deixar de apoiar o time. Por mais que o banco te assuste, que a cara do técnico te dê calafrios e que você desgoste dos onze jogadores dali, você nunca pode desistir do seu time. Pode até cair pra série B, mas olha, no outro ano você já tá ali gritando os nomes de novo.

E você sabe, torcedor, que estádio cheio ganha jogo. Que o grito da torcida faz a adrenalina voltar e aquecer aquele estádio que tinha tudo para estar desanimado. Mas você nunca pode desistir do seu time. Quantas alegria ele te deu, não é? Existe torcedor fanático, existe! Existe torcedor que não está nem aí? Existe! Existe torcedor que já está cansado de tanto sofrer pelo seu time? Oh se existe! Mas ainda são todos torcedores.

Por isso, torcedor, torça junto mesmo com aquele técnico que você não gosta…. Torça mesmo que aqueles jogadores da zaga não te agradem. Torça até quando o estádio não estiver tão cheio assim… Ajude o seu time porque ele ainda é seu e nada no mundo pode mudar isso! E nunca, torcedor, nunca, torça para que o seu time faça um gol contra. Mesmo se for daquele jogador que você odeia muito… Porque sendo ele ruim ou bom, o gol levado ainda é do seu time.

Bola pra frente, torcedor. O jogo não pode parar. Joga junto, torcedor, ajuda o técnico a ganhar o jogo. “Que a garra da torcida inteira vai junto com você Brasil!”

 

* Victoria Pannunzio tem 16 anos, é estudante secundarista e pretende ser jornalista no futuro — a despeito da oposição do pai, Fábio Pannunzio, o editor deste blog.

Eu sei o que você escreveu ontem, por Demétrio Magnoli

“Os senhores escravocratas do século 21 ainda se movem ao sabor das crenças de 50 anos atrás (…)”, escreveu Mino Carta na revista “CartaCapital” do dia 2/4, para concluir: “Daí a oposição sistemática aos governos Lula e Dilma”. Na política, o passado é uma massa de modelagem sempre disponível para servir aos interesses do presente. Sugerir que os críticos do lulismo são reencarnações dos golpistas de 1964 já se tornou um clássico da “imprensa” chapa-branca. Quando, porém, a fábula emana do teclado de Carta, um cheiro de queimado espalha-se no ar.

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Nos idos de 1970, Carta ocupava o cargo de diretor de Redação da revista “Veja” e assinava os editoriais com suas iniciais. O que M.C. escreveu em 1º de abril de 1970, sexto aniversário do golpe, está no acervo digital da revista:

“Propostos como solução natural para recompor a situação turbulenta do Brasil de João Goulart, os militares surgiram como o único antídoto de seguro efeito contra a subversão e a corrupção (…). Mas, assumido o poder, com a relutância de quem cultiva tradições e vocações legalistas, eles tiveram de admitir a sua condição de alternativa única. E, enquanto cuidavam de pôr a casa em ordem, tiveram de começar a preparar o país, a pátria amada, para sair da sua humilhante condição de subdesenvolvido. Perceberam que havia outras tarefas, além do combate à subversão e à corrupção –e pensaram no futuro.” Fofo?

Enquanto Paulo Malhães lançava corpos em rios, M.C. batia bumbo para Médici. A censura não tem culpa: os censores proibiam certos textos, mas nunca obrigaram a escrever algo. Os proprietários da Abril não têm culpa (ou melhor, são culpados apenas pela seleção do diretor de Redação): segundo depoimento (nesse caso, insuspeito) de um antigo editor da revista e admirador do chefe, hoje convertido, como ele, ao lulismo, Carta dispunha de tal autonomia que os Civita só ficavam sabendo do conteúdo da “Veja” depois de completada a impressão.

Carta foi quercista quando Orestes Quércia tinha poder (e manejava verbas publicitárias). Hoje, é lulo-dilmista até o fundo da alma. Na democracia, não é grave ter preferências político-partidárias, mesmo se essas (mutáveis) inclinações tendem quase sempre na direção do poder de turno. Mas aquilo era abril de 1970, bolas! As máquinas da tortura operavam a plena carga –algo perfeitamente conhecido, não pelo povo, mas por toda a imprensa. A bajulação condoreira a Médici não deve ser qualificada como um equívoco de avaliação: era outra coisa, que prefiro não nomear.

“CartaCapital” de 2 de abril publicou, também, um ensaio histórico sobre as relações entre a imprensa e a ditadura no qual –surpresa!– não há menção aos editoriais da “Veja” assinados por M.C. em 1970. A revista de Carta faz coro com os arautos do “controle social da mídia”, eufemismo de censura em tempos de democracia. Cada um a seu modo, os grandes jornais acertaram as contas com o próprio passado, oferecendo desculpas (“O Globo”), reconhecendo erros (Folha) ou produzindo revisões circunstanciadas (“Estadão”). Carta optou por um caminho diferente: a camuflagem.

O artigo de Carta na “CartaCapital” é uma catilinária contra os “reacionários nativos” que, “instalados solidamente na casa-grande” e “com a colaboração dos editorialistas dos jornalões”, perpetraram o golpe de 1964. De tão santa e barulhenta, a indignação editorializada induzirá algum desavisado leitor estrangeiro a imaginar que o autor denuncia, corajosamente, um golpe militar em 2014. Mas, no fim, é mesmo do presente que trata o grito rouco, o adjetivo sonante e o chavão escandido: por meio dessas técnicas, Mino Carta esconde M.C.

Acervos digitais são uma dessas maravilhas paridas pela revolução da informação. A França do pós-guerra não tinha algo assim, para sorte dos colaboracionistas de Vichy. O Brasil de hoje tem. Sorte nossa.

 

Demétrio Magnoli, doutor em geografia humana, é especialista em política internacional. Escreveu, entre outros livros, ‘Gota de Sangue – História do Pensamento Racial’ (ed. Contexto) e ‘O Leviatã Desafiado’ (ed. Record). Escreve aos sábados na Folha de São Paulo (clique aqui ara ler o link no endereço original.

Gestão temerária, por Rogério Furquim Werneck

A probabilidade de que um racionamento de energia elétrica se faça necessário tornou-se preocupantemente alta. E vem aumentando a cada dia.

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Mas o governo insiste em fingir que o problema não existe. Recusa-se a tomar medidas preventivas que, se adotadas a tempo, poderiam reduzir substancialmente o risco de ocorrência de um quadro mais grave de insuficiência de oferta de energia.

A seis meses e meio das eleições, o Planalto teme, com certa dose de razão, que o reconhecimento pelo governo de que o país está à beira de um racionamento possa ter efeito devastador sobre o projeto da reeleição. Prefere jogar com a sorte.

Boa parte da mistificação que se construiu em torno das supostas qualidades de Dilma Rousseff como administradora está relacionada ao setor elétrico. E ao papel central que a presidente desempenhou, ao longo dos três últimos governos, na condução da política energética.

Tendo feito e desfeito o que bem entendeu no setor elétrico por mais de 11 anos, a presidente não tem hoje a quem repassar a culpa pela precariedade da oferta de energia que se vê no país.

Clique aqui para ler a íntegra no  Blog do Noblat

Barbosa no tronco, por Reinaldo Azevedo

A discriminação racial assume muitas faces, mas três delas se destacam. Há o ódio desinformado, raivoso, agressivo. O sujeito não gosta do “outro” porque “diferente”, o que, para ele, significa inferior. Há a discriminação caridosa, batizada de “racismo cordial”. Olha-se esse “outro” como um destituído de certas qualidades, mas sem lhe atribuir culpa por essa falta; o “diferente” merece respeito e, se preciso, tutela. Uma vertente da cordialidade é ver a “comunidade” dos desiguais (iguais entre si) como variante antropológica. Com sorte, seus representantes acabam no “Esquenta”, da Regina Casé, tocando algum instrumento de percussão -nunca de cordas!- ou massacrando a rima num rap de protesto. E há uma terceira manifestação, especialmente perversa, que chamo de “racismo de segundo grau”. Opera com mecanismos mais complexos e só pode ser exercida por mentalidades ditas progressistas. É justamente essa a turma que tenta mandar o negro Joaquim Barbosa, ministro do STF, para o tronco.

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Os leitores da Folha que conhecem o meu blog sabem que, ao longo dos anos, mais critiquei Barbosa do que o elogiei. Antes ou depois do processo do mensalão. E os temas foram os mais variados -inclusive o mensalão. Ainda que a internet não servisse para mais nada, seria útil à memória. Os textos estão lá, em arquivo. Cheguei a ser alvo de uma patrulha racialista porque, dizia-se então, este branquelo não aceitava a altivez de um negro.

O ministro era saudado como herói por esquerdistas, “progressistas” e blogs financiados por dinheiro público -aqueles que se orgulham de ser chamados por aquilo que são: “sujos”. Como esquecer os ataques nada edificantes de Barbosa a Gilmar Mendes, seu parceiro de tribunal, em 2009? Os “petralhas” consideravam Mendes o seu único inimigo na corte, e o “negro nomeado por Lula” seria a expressão do “novo Brasil”. O príncipe virou um sapo.

Não entro, não agora, no mérito dos votos do ministro no caso do mensalão. Fato: não tomou nenhuma decisão discricionária -até porque, na corte, a discricionariedade, quando existe, atende pelo nome de “prerrogativa”. Que a sua reputação esteja sob ataque, não a de Ricardo Lewandowski, eis a evidência da capacidade que a máquina petista tem de moer pessoas. Por que Lewandowski? O homem inocentou José Dirceu, Delúbio Soares e José Genoino até do crime de corrupção ativa, mas foi duro com Kátia Rabello e José Roberto Salgado, do Banco Rural. Para esse gigante da coerência, os crimes da “Ação Penal 470” (como ele gosta de chamar) poderiam ter sido cometidos sem a participação da trinca petista. É grotesco!

Mas o que é esse tal “racismo de segundo grau”? É aquele que tenta impor ao representante de uma “raça” (conceito estúpido e desinformado!) um conteúdo militante que independe da sua vontade, da sua consciência, da sua trajetória pessoal. Assim, por ser negro, Barbosa seria menos livre do que um branco porque obrigado a aderir a uma pauta e a fazer o discurso que os “donos das causas” consideram progressista. Ao nascer negro, portanto, já teria nascido escravo de uma agenda.

O mensaleiro João Paulo Cunha foi explícito a respeito: “[Barbosa] Chegou [ao Supremo] porque era compromisso nosso, do PT e do Lula, reparar um pedaço da injustiça histórica com os negros”. O ministro não se pertencia; não tinha direito a um habeas corpus moral.

Afinal de contas, quantos votos Barbosa tem no tribunal? Notem que os movimentos negros -a maioria pendurada em prebendas estatais- silenciou a respeito. Calaram-se também quando o jornalista Heraldo Pereira foi chamado de “preto de alma branca” por um desses delinquentes financiados por dinheiro público. Por que defender um negro que trai a causa? Por que defender um negro bem-sucedido da TV Globo?

Um preto só prova que é livre quando obrigado a carregar a bandeira “deles”.

Reinaldo Azevedo escreve às sextas-feiras na Folha de São Paulo.

 

Maconha pelas razões erradas, por Hélio Schwartsman

É claro que cada um é livre para defender o que achar melhor, mas devo dizer que algo me incomoda na estratégia de grupos de ativistas de pressionar pela legalização da maconha com base em suas propriedades medicinais.

Não me entendam mal. Sou pela legalização não só da maconha como de todas as drogas. É fato ainda que a Cannabis apresenta várias moléculas de interesse médico, que deveriam ser exploradas clinicamente.

maconhamedicinal

O que não me parece muito certo na tática escolhida é que ela aposta na corrosão das normas e não em sua modificação, como seria mais honesto. Foi este o caso de alguns Estados norte-americanos, que passaram a admitir o uso de maconha em contexto médico e logo viram surgir uma indústria de consultas com profissionais de saúde cujo único intuito era encontrar uma “moléstia” que justificasse a emissão da carteirinha de usuário para qualquer um que desejasse. Com ela, o paciente poderia comprar a erva para tratar quase tudo, de dor nas costas a caquexia.

Não gosto desse caminho por várias razões. A mais trivial é que ele contribui para esvaziar a própria noção de lei. Apesar da miríade de normas estúpidas que assola o mundo, a ideia de que a sociedade pode impor regras que valem para todos os membros ainda é fundamental.

Também me parece ruim associar a maconha com remédio. Isso pode fazer com que se perca de vista que se trata de uma droga, ou seja, que vem com uma porção de efeitos colaterais que podem ser danosos.

Mais importante, a estratégia de comer pelas beiradas faz com que as pessoas deixem de travar o bom combate. Ao circunscrever o debate da legalização apenas à maconha e pelas razões erradas, perde-se a oportunidade de formular o argumento essencial, a saber, que o Estado não tem legitimidade para decidir o que um cidadão, de posse das informações relevantes e sem prejudicar terceiros, pode fazer consigo mesmo.

helio@uol.com.br

Leia o texto no site da Folha de São Paulo, onde foi originalmente publicado

Em defesa da Monica Waldvogel, contra a falácia de Vladimir Safatle, por Sérgio Leo

Antes de tudo, deixo claro que gosto muito do Vladimir Safatle, e considero a leitura de seus artigos mais que necessária, prazerosa. Uma das vozes indispensáveis no debate público brasileiro. Tem uma posição clara, e uma pretensão explícita: ao lançar seu nome como candidato do PSOL em São Paulo, mais que ganhar eleição, quer garantir espaço na arena política. Legítimo e justo. Adoraria se amigo dele. Que, ainda por cima, é doutor em Lacan. E inteligente e erudito como nunca serei.

Ele, em entrevista na Globonews, repetiu argumento comum nas redes sociais: a imprensa deu destaque à morte do cinegrafista, por um rojão atirado por um militante, e desprezou as outras várias mortes causadas nas manifestações pela polícia. Nessa contabilidade, inclui pessoas mortas quando tentavam escapar da confusão, uma mulher que teve ataque cardíaco quando sentiu as bombas de gás, um garoto atropelado por um taxi, um senhor que caiu do viaduto.

Para quem não segue a linha de raciocínio de Vladimir e seus companheiros, a falácia é evidente, embora seja muito mais difícil denunciá-la inequivocamente, sem correr o risco de parecer que se defende a brutalidade e incompetência policial. Minha amiga Mônica Waldvogel, que teve a honestidade jornalística de chamar Vladimir para a entrevista e dar a ele condições de explicar com liberdade suas posições e argumentos, tentou rebater essa falácia, e não foi feliz. Bastou a tentativa para ser demonizada nas redes sociais, pelos que só veem más intenções em todo esforço jornalístico.

Está aí a falácia de Vladimir Safatle (e não só ele): dizer que é erro ir a fundo no caso Santiago porque não se fez isso na violência policial é o mesmo que impedir apuração contra os “justiceiros” da Zona Sul enquanto não reprimir a onda de assaltos no Aterro do Flamengo. Monica, que conheço há anos e é uma jornalista competente e sensível, pressionada pelas limitações de tempo e profundidade da entrevista ao vivo, investida do papel de provocador, não de antagonista, atrapalhou-se na hora de inquirir o Vladimir. O que bastou para a claque de sempre nas redes sociais a atacar.

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A questão é que a polícia é autorizada pelo contrato social a exercer a violência, se necessário for, para manter a ordem pública. E só ela. E com limites claros.  Os demais cidadãos, ao notar o abuso desse poder de polícia, podem e devem recorrer às outras instituições da democracia, o Judiciário, a corregedoria, os políticos. Se as instituições não funcionam, a (grande) política está aí para o esforço de mudá-las, o Judiciário deve ser pressionado legitimamente, os órgãos públicos lenientes, denunciados.

Quem, na ausência de resultado das ações contra a violência policial, defende que cada cidadão faça justiça pelas próprias  mãos, jogando pedras, rojões e coquetéis molotov nos policiais ou em quem estiver perto, está seguindo a mesma cartilha preconizada pelos neo-integralistas da linha Rachel Sheherazade: o Estado não nos atende, os cidadãos de bem têm o direito de agir por conta própria,violentamente se julgarem necessário, contra a violência que os ameaça.

Nem todo cidadão ferido ou coisa pior em um tumulto resultante do confronto entre policiais e manifestantes é vítima da violência que partiu da polícia. Há que se apurar cada caso, cada circunstância e, seguramente, as mortes causadas pelo despreparo da polícia não são todas as que lhe atribuem agora. As outras, das vítimas da polícia, devem ser apuradas e determinada punição aos responsáveis.

A morte de Santiago tem, sim, caráter diferente, porque não decorre do despreparo ou brutalidade dos agentes públicos encarregados pela sociedade de atender às ordens de governos legitimamente eleitos. É consequência da ação voluntarista de cidadãos que julgaram legítimo acionar um artefato explosivo, letal, para combater o que consideram violência do Estado. Nem sequer se assumem como grupo, ou partido, ou qualquer instituição capaz de substituir a ordem vigente por outra mais inclusiva. Defendem que, pela violência, obrigarão o Estado a reconhecer suas reivindicações (vagas, difusas) e isso mudará o status quo. Condenar os autores da morte de Santiago é condenar esse modo de ação violento e descontrolado que quer se fazer passar por alternativa às soluções democráticas existentes

Os disparados de rojão mudaram, de fato, o status quo da família de Santiago, que perdeu o pai e marido. Dos jornalistas, que se consideram alvo dos manifestantes radicalizados convencidos de que a “mídia” é composta por canalhas e inimigos da população. E do governo, independentemente da filiação partidária, que se vê obrigado a descobrir uma forma de evitar que se repita o assassinato ou a destruição de bens públicos e privados, em escala maior ou em outras circunstâncias politicamente mais delicadas. Mudou também o status quo da direita e outros oportunistas de corte autoritário, que ganharam aliados para bradar por leis repressivas mais severas, argumentando que a anarquia das manifestações mata inocentes e pode levar ao descontrole social.

Nada reduz a necessidade de cobrar da imprensa uma atenção maior às consequências da violência policial. A dependência dos repórteres em relação a informações do governo, a relação às vezes espúria entre certos jornalistas e policiais, a constatação de que muitos manifestantes defendem abertamente a destruição de bens públicos e privados como forma de protesto legítimo, tudo isso contribui para diminuir o empenho da imprensa em ir mais a fundo na cobrança de investigações e responsabilização dos culpados na polícia.  Erro grave, que deve  ser cobrado.

Mas nada disso faz com que seja menos necessário investigar e cobrar independentemente as responsabilidades no caso do cinegrafista morto. Até porque há muita gente que não vê mal no que houve, chama a morte de “acidente” e anuncia a intenção de prosseguir com respostas violentas à ação do Estado e até mesmo à decisão de prosseguir com a realização da Copa do Mundo. Uma coisa, urgente e necessária, é exigir mais eficiência e responsabilidade do aparelho do Estado, o que vem sendo feito e pode ser feito com mais ênfase. Outra é condenar o voluntarismo e irresponsabilidade de quem romantiza a violência pretensamente revolucionária, sem atentar para suas consequências, dificilmente positivas na conjuntura política que vivemos.

É a outra ponta da falácia de Vladimir (e não só ele): aceitar a crítica de que a imprensa, antes de falar de Santiago, deveria ter falado da polícia, é aceitar como legítima a resposta violenta e individual ao desconforto com a ineficiência e violência do Estado. Isso dá em Black bloc. Mas também dá nos justiceiros do Flamengo. Duas faces reacionárias e anti-democráticas da mesma moeda podre. Como certamente quis mostrar a Mônica, que entrou nessa história como jornalista, disposta a esclarecer, não polemizar, sem a disposição retórica de militante.

Estou contigo Mônica Waldvogel, Sei como é cruel tentar abrir espaço ao entrevistado e ser alvo de más interpretações de quem confunde entrevista com disputa política.

Leia o original no blog do Sérgio Leo

Água Seca, por Xico Graziano

Prepare-se: vai faltar água na torneira. A situação é extremamente crítica. Em pleno verão, época de abundantes chuvas, os reservatórios estão minguados. Na agricultura, o forte calor associado às baixas precipitações estorrica as lavouras. Anda em busca de explicações o inusitado fenômeno climático.

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Prato cheio para o catastrofismo ecológico. Estrilam sua voz os que apregoam o fim do mundo pela nefasta ação do homem sobre o meio ambiente. Na teoria das mudanças climáticas, o efeito antrópico sobrepõe-se às causas naturais. E uma de suas consequências, nessa questão hídrica, seria a maior variabilidade na lavanderia de São Pedro: épocas muito chuvosas se alternariam com outras muito secas, no mesmo local. Tempo maluco.

Em decorrência do aquecimento global, causado pelo acúmulo de CO2 na atmosfera, haveria também um deslocamento das zonas úmidas. No caso brasileiro, por exemplo, supõe-se que até o final deste século a floresta amazônica se transforme numa savana, um bioma árido semelhante ao cerrado do Centro-Oeste. Nesta região, inversamente, passaria a chover mais. Vai saber.

Há quem, observando as margens dos mananciais, jogue toda a culpa da falta d’água na supressão das matas ciliares, aquelas que protegem as beiradas dos rios, córregos e nascentes. É exagero, mas a questão existe. Houve, nos campos e nas cidades, uma ocupação desordenada dessas áreas ribeirinhas, prejudicando os recursos hídricos. Pelo interior afora se contam inúmeras minas d’água que tristemente secaram por causa do intenso desmatamento.

Hoje em dia, porém, a situação está melhorando. Aqui, no Estado de São Paulo, o desmatamento cresceu até os anos 1990, verificando-se um processo de recuperação ambiental desde então. Dados do Inventário Florestal indicam que a vegetação natural cobre atualmente uma área de 4,3 milhões de hectares, correspondente a 17,5% do território paulista. Antes eram 13,9%. Maior conscientização somada à repressão policial trocou a página da supressão vegetal, abrindo a da regeneração florestal. Com ajuda das áreas canavieiras, formam-se corredores de biodiversidade serpenteando os cursos d’água no campo. Fauna e flora agradecem.

Pode ser que as mudanças climáticas e a ocupação humana estejam afetando o regime de chuvas. Seca, porém, não é privilégio contemporâneo. Na História da humanidade verificam-se terríveis períodos com pronunciada falta d’água. Sua repetida ocorrência é arrolada por Jared Diamond entre as explicações do colapso da civilização maia. Somados à exploração exaustiva dos recursos naturais na península mexicana de Yucatán, longos períodos de severa estiagem explicam a derrocada de Tikal, por volta de 600 d.C. Era apenas o começo da desgraça. Todo o povo maia acabou terrivelmente afetado por uma grande seca iniciada em 760, cujo auge se deu 40 anos mais tarde. Uma década depois, em 810, seguidos anos com pouquíssima chuva aniquilaram essa agricultura pré-colombiana. Ferozes reis guerreavam buscando alimento e água. Até que, a partir de 910, uma seca de seis anos seguidos arrematou a tragédia.

Falar em seca aqui, no Brasil, lembra o Nordeste. Vem de longe o recorrente problema. O primeiro relato da falta de chuvas na região é de 1583, descrito pelo padre Fernão Cardim, então apiedado pelo sofrimento dos índios do sertão. Quase dois séculos depois, entre 1877 e 1879, parte importante dos moradores de Fortaleza pereceu em devastadora seca que afetou especialmente o Ceará. De tempos em tempos o nordestino padece no tórrido chão. Há dois anos, metade do gado bovino morreu no semiárido, durante a maior seca dos últimos 50 anos.

Os eventos históricos mostram, à farta, que muito antes de os cientistas se preocuparem com o meio ambiente as secas já danificavam economias e arrasavam populações. Os dramas mais recentes, desnudados pela facilidade das comunicações, ganharam viés ecológico, impressionando a opinião pública. Mas, cientificamente, ninguém garante os motivos que levaram a Austrália a ver sua competitiva agropecuária decaída por uma década de atípica de chuvas no início deste século. Na Califórnia (EUA), atormentada pelo terceiro ano seguido extremamente seco, o fenômeno continua sem explicação.

Pouco importa descobrir culpados, sejam humanos ou celestes. Em face do crescimento populacional e do consumo crescente, é imperativo investir seguidamente na proteção dos recursos hídricos, elevando a capacidade de “produção” e armazenamento de água. No curto prazo, com a ameaça de a torneira secar, resta somente uma alternativa: combater desperdícios, reduzir o gasto do precioso líquido. Nessa hora, desgraçadamente, se descobre que nossa cultura beira o esbanjamento, não o racionamento. É terrível.

Noutro dia, deparando com o zelador do prédio vizinho ao meu lavando a calçada com mangueira, tive a ousadia de interpelá-lo: “Vamos economizar água, meu amigo!” Tomei como resposta um xingo irônico: “Quem vai pagar a conta é você?”. O incauto não tinha a menor ideia da gravidade da situação de nossos mananciais.

Desperdiçar água simboliza o passado. O Amazonas e os demais grandes rios brasileiros sempre transmitiram uma noção equivocada de fartura do precioso líquido, criando entre nós a impressão de ser a água um bem infinito. Essa incompreensão só se conserta com educação ambiental. É nos bancos da escola que se descobre que apenas 2,7% de toda a água existente na Terra é doce e que os rios e lagos respondem por ínfimos 0,3% dessa quantidade.

As crianças, educadas com novas atitudes, sabem que economizar água significa civilidade. Por isso não lavam calçadas.

 *Xico Graziano é agrônomo e foi secretário de Agricultura e secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. E-mail: xicograziano@terra.com.br.

O artigo pode ser lido no site do Estadão, onde foi originalmente publicado. Basta clicar aqui.

 

Carta aberta à minha pequena, por Victor Sá

Minha pequena,

Enquanto você está sendo preparada aí na barriga da mamãe, o mundo aqui fora está bastante dodói.

Daquelas doenças que não sabemos se é melhor desejar a morte e consequentemente o alívio, ou lutar enfrentando as possíveis sequelas e dores. Eu não queria ser obrigado, pequena, a te dizer essas coisas tão cedo. Mas temo que quando você sair daí se assuste com tanta mesquinharia e queira voltar. Preciso te preparar, minha filha.

Olha, meu amor, a vida aqui não tá fácil, mas se você odiar muito, prometo que podemos fugir pro Uruguai, tá? Promessa viu?

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Eu sei que você não pediu pra nascer. Mamãe e eu que inventamos essa história e por isso mesmo, queria conseguir mudar o mundo nesses próximos 4 meses que faltam até você estar pronta. Mas, pequena, você tem que saber logo de cara: Eu não sou um super-herói. Papai não consegue mudar o mundo. O que não quer dizer que desistirei, viu? Cê vai me ajudar nessa, lindinha.

Mas ó, pra você não se assustar já te aviso: Você vai vir pra um lugar onde tem gente que defende tortura, preconceito, machismo, segregação, racismo, e mais um monte de coisa ruim. Inclusive, tem gente que defende isso na televisão! É, televisão é onde o papai trabalha. E eu juro que tento entender o tamanho disso e ser sempre ético. Ah, aproveito pra prometer, desde já, não te usar pra justificar escolhas cretinas, tá?

Esse ano começou muito difícil, meu amor. Parece que o pior das pessoas está na moda. Já rolaram várias tragédias. Semana passada, um cinegrafista morreu trabalhando filmando uma manifestação. Assim como o papai, ele trabalhava na televisão. Foi um acidente muito trágico e triste. Sabe, amor, coisas ruins podem acontecer com pessoas boas. São mistérios da vida que nunca conseguiremos aceitar por completo e muito menos entender. Às vezes, o caminho é chorar a valer. Isso é importante você saber: Chorar, se permitir sentir, é sempre um caminho louvável, sabe? Eu pelo menos acho e tento fazer assim. A vida é difícil pra caramba, amor. Mas estaremos juntos.

Bom, o homem que morreu era um cara muito bem quisto por todo mundo. Papai não o conheceu, mas viu que todo mundo ficou bem triste e gostava demais dele – A tristeza nesses casos é super normal, viu? Não tenha medo da tristeza, ela também faz parte das coisas bonitas da vida (depois tento explicar isso melhor) – O problema, é que uma gente má intencionada quer se aproveitar do acidente. Uns políticos sujos querem aproveitar o momento de dor e aprovar leis que vão contra nossos sonhos, meu amor. Querem transformar jovens corações libertários em terroristas. Esses políticos morrem de medo da liberdade. Nada os amedronta mais que nossos sonhos, pequena, por isso eles querem prender todo mundo que pensa e luta. Ano passado, meu amor, o titio Pedrão foi preso, acredita? Por sorte, essa lei maluca não existia e todo mundo percebeu que o tio Drão é um dos caras mais legais do mundo e ele tá solto agora. Ufa, né amor?

Nessa onda oportunista, alguns veículos da imprensa tentaram transformar os movimentos sociais e partidos de esquerda em criminosos! Olha que absurdo, pegaram um dos poucos políticos sérios e inventaram uma “não-notícia” sobre ele. Tão absurdo que até virou piada: #ligaçãocomfreixo é uma hashtag que tá bombando. Mas não vou explicar o que é hashtag, isso cê vai sacar rápido.

E no meio disso tudo, tem uma coisa chamada “opinião pública”, meu amor. Nossa, quanta gente burra você vai conhecer na sua vida. Ó, tem um negócio aqui chamado facebook. Papai perde muito mais tempo que deveria nele. E lá aparecem pessoas que você podia jurar que eram normais, e até bacanas, mas do nada escrevem defendendo a pena de morte (!), falam burrices como “direitos humanos pra humanos direitos”, “bandido bom é bandido morto” “que se Deus gostasse de gays não teria feito o homem e a mulher”, “feminismo é o contrário de machismo”, “adote um marginal”. Eu não sei explicar esse fenômeno. Mas sinceramente te recomendo distância desse tipo de gente. De verdade. Sabe, é difícil, eles estão em tudo que é canto. E às vezes é só ignorância e vale a pena conversar, discutir, e todos crescerem com o debate. Só que tem casos que, realmente, não quero você se relacionando com esse tipo de ser humano. Eu juro que não sei se eles são burros ou mal intencionados, mas em todo caso, acho melhor você evita-los. Pelo menos até uma certa idade, amor. Depois você pode se aventurar em debater com eles. Mas por enquanto, acho mais seguro andar com quem acredita no amor, na liberdade, na tolerância , como papai e mamãe, tá? (Mamãe tá aqui do lado lembrando que você pode contar também com o titio Matheus. Além dele sempre escrever sobre os “Almeidinhas” da opinião pública, ele já fez um irmãozinho/amiguinho, o Miguel, afilhado da mamãe)

Na real, é simples, se a pessoa começar qualquer frase com “não sou preconceituoso, mas…” você nem precisa ouvir. Juro, isso vai te poupar muito tempo.

Nesse mesmo ano, a polícia já matou gente inocente, amor. Eles fazem isso, pequena. A explicação é longa, vem de lá trás quando o país era dominado pelos militares. Uns caras muito malvados que acreditavam em conceitos doentios como hierarquia e tortura. Nós aqui em casa somos contra as duas coisas, tá? Bom, além disso, o pessoal da polícia é super mal treinado, mal pago e mais um monte de coisa. Vou te explicar melhor um dia. E não é que papai odeia policial. Não é isso de jeito nenhum! Mas muitos deles (não todos) já fizeram muito mal pra muitos amiguinhos do papai. Por exemplo, quando eu e o titio Filé tínhamos 13 anos, quase levaram ele. O tio Filé conta que soltaram ele porque ele é loirinho e branco, mas que o rapaz ao lado, negro, foi bastante espancado. Era nossa primeira passeata. Mas, amor, não podemos alimentar esse sentimento de ódio contra eles, tá? Policial é trabalhador, nós não podemos nunca estar contra os trabalhadores. O que defendemos, pequena, é uma polícia que não seja militar. Que seja bem remunerada, bem humorada, inteligente e que sirva e proteja a gente. É isso que defendemos aqui, tá? Uma polícia amorosa. (eu até mudaria o nome de polícia pra “amigões”, imagina? “Problemas? – Chame os amigões!”) Mas infelizmente, minha filha, isso é distante de nossa realidade. E olha que somos brancos de classe média alta. Para quem não é nenhuma dessas duas coisas, é bem pior. É, amor, tem isso também.

Você vai achar estranho só o tio Heitor ser negro entre seus titios. Bom, é triste, mas é isso. Estudei em um colégio pago com inclinações fascistas sem nenhum coleguinha negro. E na faculdade tinham apenas dois ou três negros na sala do papai. Um deles é o nosso querido titio Heitor. Aliás, além de negro ele é gay. E nós amamos ele demais, viu? Pra explicar isso é bem difícil, mas bem pouco tempo atrás os negros eram tratados como escravos. Eu não vivi isso, faz tempo, mas não tanto tempo quanto gostaríamos. Depois de muita luta, isso mudou. Mas infelizmente, o preconceito e algumas ideias daquela época continuam. Essa será mais uma luta nossa viu, amor? E uma dica, se alguém negar que existe isso, se te falarem que não existe racismo, saiba, essa pessoa provavelmente é racista. (é só uma dica, mas cê vai perceber que funciona quase sempre)

Outra coisa, tem gente aqui que acha engraçado tirar sarro, humilhar minorias e reforçar preconceitos. Eles chamam isso de “humor politicamente incorreto”. Eu sei, é uma coisa louca que não faz sentido nenhum. Imagina, “incorreto” jogar o jogo dos poderosos e se posicionar com a maioria? Sim, pequena, eles são maioria. Mas fica calma. Nós somos sonhadores, e não somos os únicos. O tio John Lennon me ensinou e eu vou ensinar você.

Se o mundo não é o lugar ideal pra te trazer, com certeza, ele será um lugar melhor com sua chegada.

Amor e beijos anárquicos,

Papai.

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Freixo outra vez, por Caetano Veloso

Gosto de Freixo não porque ele é do PSOL. Acho que gosto um tanto do PSOL por ele abrigar Freixo. Sou independente, conforme se vê. Ser estrela é bem fácil. Nada importam as piadas dos articulistas reacionários que classificam minhas posições como Radical Chic. Desprezo a tirada de Tom Wolfe desde o nascedouro. Antigamente tentavam me incluir na chamada esquerda festiva. Isso sim, embora incorreto, me agradava: a expressão brasileira é muito mais alegre, aberta e democrática do que a de Wolfe. Mas tenho vivido para desmontar o esquema que exige adesão automática às ideologias da moda. Deploro o resultado das revoluções comunistas. Todas. E, considerando o Terror que se seguiu a 1789, sou cético quanto a revoluções em geral.

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Na maioria das vezes, a violência se dá, não para fazer a história humana caminhar, mas para estancar seu fluxo. Olho com desconfiança os moços que entram em transe narcisista ao quebrar vidros crendo que desfazem a trama dos poderes. Ainda hoje não consigo adotar a posição que considera Eduardo Gianetti, um liberal crítico, ou André Lara Rezende, o homem que põe em discussão o crescimento permanente, conservadores. Nem acho que o conservadorismo seja necessariamente um mal. A adesão de alguns colegas meus à nova direita me deixa nauseado, não por ser à direita, mas por ser automática.

Simplesmente me pergunto qual exatamente será a intenção do GLOBO ao estampar manchetes e editoriais induzindo seus leitores a ligarem Marcelo Freixo aos rapazes que lançaram o rojão que matou Santiago Andrade. A matéria publicada no dia em que saiu a chamada de capa com o nome do deputado era uma não notícia. Nela, a mãe de Fábio Raposo, o rapaz que entregou o foguete a Caio Souza, é citada dizendo acreditar que o filho “tem algum tipo de ligação com Freixo”. Isso em resposta a uma possível declaração do advogado Jonas Tadeu Nunes, que, por sua vez, partiu de uma suposta fala da ativista apelidada Sininho. O GLOBO diz que esta nega. Como então virou manchete a revelação da possível ligação entre o deputado e os rapazes envolvidos no trágico episódio? Eu esperaria mais seriedade no trato de assunto tão grave.

Li o artigo do grande Jânio de Freitas em que ele defende a tese de intenção deliberada de assassinar um jornalista, o que está em desacordo com as imagens exibidas na GloboNews. Sem falar na entrevista do fotógrafo, que afirma que o detonador do artefato tinha mirado os policiais. Claro que me lembrei, ao ver a primeira reportagem na GloboNews, dos carros de emissoras de TV incendiados durante as manifestações, o que me levou a participar da indignação dos âncoras do noticioso. Um vínculo simbólico entre aquelas demonstrações de antipatia e o ocorrido em frente à Central é óbvio: um rojão sai das mãos de um manifestante e atinge a cabeça de um jornalista. Mas parece-me abusivo ver nisso o propósito de matar o repórter. Nas matérias que se seguiram, O GLOBO, ecoando falas do advogado Jonas Tadeu, que diz não ser pago por ninguém para defender os dois réus mas conta que um deles diz receber dinheiro para ir às manifestações, insiste em lançar suspeita sobre Freixo, por ser o PSOL, seu partido, um possível doador do alegado dinheiro. Na verdade, as declarações do advogado, mesmo nas páginas do GLOBO, soam inconvincentes. O mesmo Jânio de Freitas, em artigo posterior àquele em que defende a tese de assassinato deliberado, se mostra desconfortável com o comportamento de Jonas Tadeu. Já O GLOBO, no qual detecto uma sinistra euforia por poder atacar um político que aparentemente ameaça interesses não explicitados, trata as falas de Tadeu sem crítica. Uma das manchetes se refere a vereadores do PSOL que teriam contribuído para uma ação na Cinelândia, na véspera de Natal, sugerindo ligação do partido com vândalos, quando se tratava de caridade com moradores de rua. O tom usado no GLOBO é, para mim, de profundo desrespeito pela morte de Santiago.

Freixo, em fala firme ao jornal, desmente qualquer ligação com os dois rapazes. Ele também lembra (assim como faz Jânio) que Jonas Tadeu representou o miliciano Natalino.

Quando Freixo era candidato a prefeito, escrevi artigo elogioso sobre ele. O jornal fez uma chamada de capa que, a meu ver, desqualificava meu texto. Manifestei minha indignação. A pessoa do jornal que dialogava comigo me assegurou não ter havido pressão dos chefes. Acreditei. Agora não posso deixar de me sentir mal ao ver a agressividade do jornal contra o deputado. Tudo — incluindo os artigos de autores por quem tenho respeito e carinho — me é grandemente estranho e faço absoluta questão de dividir essa estranheza com quem me lê.

O artigo de Caetano foi publicado originalmente no jornal O Globo e pode ser acessado aqui:  http://oglobo.globo.com/cultura/freixo-outra-vez-11616610#ixzz2tUZAXtSZ