A imagem que abre este post é a reprodução fotográfica de um grafite que há dois anos orna uma parede da esquina das ruas da Consolação e Maria Antônia, no centro de São Paulo. O belo mural, pintado pelo grafiteiro Kobra no fim de 2011, é uma espécie de panfleto iconográfico contra a construção da usina de Belo Monte, no sul do Pará.
O que o grafite denuncia é a iminência de um genocídio contra etnias que há milênios ocupariam as terras que serão alagadas pelo lago (na verdade são dois) da hidrelétrica. Daí a mira vermelha em cujo centro está o rosto infantil de um indiozinho.
Não há dúvida quanto à força da mensagem. O mural é de uma assertividade desconcertante. A expressão alegre e ingênua no rosto de curumim contrasta com a violência do tiro presumido que está prestes a ser disparado.
O grafite foi inspirado na foto que você à direita. Não fossem algumas imprecisões formais, seria a mensagem perfeita para denunciar o problema correto. Vamos a elas.
O curumim é, presumivelmente, da etnia caiapó, dadas as pinturas e os adereços festivos que enfeitam seu corpo. Os caiapó, em sua maioria, vivem nos arredores do Parque Nacional do Xingu, em Mato Grosso, uma região que está a centenas de quilômetros de Altamira e da barragem — e não será afetada por ela. Não podem esses índios, portanto, ser vítimas de um genocídio provocado pelo dilúvio belomonteano.
Há, no entanto, duas etnias que vivem próximas ao local onde serão formados os lagos e que efetivamente serão impactadas pelo surgimento de Belo Monte: os arara e os juruna. Só que, ao contrário do que reza o mantra dos que se opõem à hidrelétrica, esse impacto não se dará pelo alagamento de suas terras, e sim pela redução da vazão do rio Xingu nas margens lindeiras à área de suas reservas.
Somados todos os integrantes dessas duas etnias, chega-se a um número pouco ventilado quando o que está em discussão é o futuro de Belo Monte: São apenas 240 indivíduos, de acordo com a própria FUNAI. Em um único igarapé de Altamira, o universo de pessoas impactadas supera em muito o número de indígenas afetados.
Trata-se do Igarapé Panelas, que será totalmente inundado com o fechamento das comportas do Lago de Pimental. 280 famílias de oleiros perderão a um só tempo a moradia e o ofício, uma vez que os jazimentos de seu principal insumo, a argila, serão permanentemente alagados. Como todos são brancos e negros — e a despeito de serem pobres –, não têm direito às lágrimas das carpiderias.
Muito mais sorte têm os indígenas. Além das vozes altissonantes do Ministério Público e de um coro afinado de ONGs, o que não lhes falta é o apoio engajado de um numeroso grupo de celebridades hollywoodianas. Em 1989, o cantor Sting já desfilava ombreado com cacique Raoni em diatribes contra Kararaô, que foi o primeiro nome do projeto de Belo Monte.
Quando Sting se cansou da brincadeira, foi secundado, com 12 anos de hiato, pelo cineasta James Cameron, de Avatar. Com ele, a atriz Sigourney Weaver. Ambos desfilaram seu talento pelas terras paraenses, ficaram chocados com o que não viram e decidiram bancar uma campanha mundial contra a construção da usina. Não deu certo. Pobres homenzinhos azuis da Amazônia!
O que chama a atenção não é a legitimidade das manifestações nem a propriedade das preocupações. É a arrogância com que certas celebridades de apropriam do problema. Cameron chegou a ameaçar levar a construção de Belo Monte para discussão pelo Congresso americano — como se o Brasil não tivesse seu próprio Congresso e estivesse incapacitado para decidir sobre seu próprio futuro e sobre a utilização de seus recursos naturais.
http://www.youtube.com/watch?v=3hILoPxniTI
Alheamento e militância
“Você já ouviu falar em Belo Monte ? Você já foi à Amazônia ? E desenvolvimento sustentável, sabe o que é ?”
A série de perguntas abre o video estrelado por uma constelação de atores globais que, é quase certo, nunca haviam ouvido fala em Belo Monte, jamais estiveram na Amazônia e não têm a menor ideia do que é desenvolvimento sustentável. Lindos, jovens e expressivos, eles ajudaram a criar uma onda contrária à construção da hidrelétrica na opinião pública. Os argumentos, apresentados com uma oratória veemente, podem ser vistas logo acima.
O video é um prodígio de equívocos — cometidos, diga-se, de boa-fé. Mas nem esse atenuante é capaz de dar nexo a uma argumentação que, em seu ponto culminante, chega a afirmar que a energia hidrelétrica só seria limpa se fosse produzida, sabe onde ? No deserto!
Apesar da estultice de algumas campanhas, as pressões sociais tiveram uma grande utilidade. Não é que, ao contrário do que se afirma no filmete, não se tenha discutido o projeto — que aliás foi debatido por mais de 40 anos. É que várias mudanças foram sendo incorporadas a ele graças à pressão dos ambientalistas.
A principal foi a renúncia à intenção inicial de criar um lago de 1,2 mil quilômetros quadrados. Agora, os dois lagos somarão 520 quilômetros quadrados de superfície — aproximadamente a terça parte do que se pretendia. E uma boa porção já é alagada sazonalmente pelo rio nas épocas de cheia.
A redução do lago projetado fez com que o potencial de geração fosse encolhido, de maneira equivalente, para um terço do que seria possível fazer caso o Brasil não tivesse se democratizado. Por esta razão, funcionando “a fio d’água”, apenas com o excedente de vazão criado pelas chuvas, a usina passará a maior parte do tempo com 12 das suas 18 turbinas fechadas. Na média, gerará pouco menos de 5 mil megawatts de energia. A média anual será equivalente a um terço do potencial instalado.
“Pode ser que no futuro venhamos a nos arrepender dessa opção”, alerta o engenheiro Kelson Elias FIlhos, diretor de construção de Belo Monte. “Mas isso é o que foi possível fazer no momento, após um exaustivo processo de audiências públicas”.
Este é o jogo saudável da democracia. A obra prevista originalmente devastaria porções enormes da Amazônia, criaria um lago de dimensões quase oceânicas e mancharia ainda mais a frágil reputação ambiental brasileira. Ficou com o tamanho possível e vai gerar a energia possível dentro do contexto histórico-político dos dias de hoje.
Para o desgosto dos que travam o combate ideológico contra a construção da barragem, não haverá genocídio, terras indígenas não serão alagadas e os megawatts ali produzidos vão ajudar o País a mitigar a escassez de energia que trava a economia e coloca no horizonte próximo o risco dos apagões.Pode não ser o cenário milenarista desenhado pelos apocalípticos contemporâneos. Mas, com certeza, vai fazer acender uma luzinha no fim do túnel do gargalo estrutural brasileiro.