Antes de tudo, deixo claro que gosto muito do Vladimir Safatle, e considero a leitura de seus artigos mais que necessária, prazerosa. Uma das vozes indispensáveis no debate público brasileiro. Tem uma posição clara, e uma pretensão explícita: ao lançar seu nome como candidato do PSOL em São Paulo, mais que ganhar eleição, quer garantir espaço na arena política. Legítimo e justo. Adoraria se amigo dele. Que, ainda por cima, é doutor em Lacan. E inteligente e erudito como nunca serei.
Ele, em entrevista na Globonews, repetiu argumento comum nas redes sociais: a imprensa deu destaque à morte do cinegrafista, por um rojão atirado por um militante, e desprezou as outras várias mortes causadas nas manifestações pela polícia. Nessa contabilidade, inclui pessoas mortas quando tentavam escapar da confusão, uma mulher que teve ataque cardíaco quando sentiu as bombas de gás, um garoto atropelado por um taxi, um senhor que caiu do viaduto.
Para quem não segue a linha de raciocínio de Vladimir e seus companheiros, a falácia é evidente, embora seja muito mais difícil denunciá-la inequivocamente, sem correr o risco de parecer que se defende a brutalidade e incompetência policial. Minha amiga Mônica Waldvogel, que teve a honestidade jornalística de chamar Vladimir para a entrevista e dar a ele condições de explicar com liberdade suas posições e argumentos, tentou rebater essa falácia, e não foi feliz. Bastou a tentativa para ser demonizada nas redes sociais, pelos que só veem más intenções em todo esforço jornalístico.
Está aí a falácia de Vladimir Safatle (e não só ele): dizer que é erro ir a fundo no caso Santiago porque não se fez isso na violência policial é o mesmo que impedir apuração contra os “justiceiros” da Zona Sul enquanto não reprimir a onda de assaltos no Aterro do Flamengo. Monica, que conheço há anos e é uma jornalista competente e sensível, pressionada pelas limitações de tempo e profundidade da entrevista ao vivo, investida do papel de provocador, não de antagonista, atrapalhou-se na hora de inquirir o Vladimir. O que bastou para a claque de sempre nas redes sociais a atacar.
A questão é que a polícia é autorizada pelo contrato social a exercer a violência, se necessário for, para manter a ordem pública. E só ela. E com limites claros. Os demais cidadãos, ao notar o abuso desse poder de polícia, podem e devem recorrer às outras instituições da democracia, o Judiciário, a corregedoria, os políticos. Se as instituições não funcionam, a (grande) política está aí para o esforço de mudá-las, o Judiciário deve ser pressionado legitimamente, os órgãos públicos lenientes, denunciados.
Quem, na ausência de resultado das ações contra a violência policial, defende que cada cidadão faça justiça pelas próprias mãos, jogando pedras, rojões e coquetéis molotov nos policiais ou em quem estiver perto, está seguindo a mesma cartilha preconizada pelos neo-integralistas da linha Rachel Sheherazade: o Estado não nos atende, os cidadãos de bem têm o direito de agir por conta própria,violentamente se julgarem necessário, contra a violência que os ameaça.
Nem todo cidadão ferido ou coisa pior em um tumulto resultante do confronto entre policiais e manifestantes é vítima da violência que partiu da polícia. Há que se apurar cada caso, cada circunstância e, seguramente, as mortes causadas pelo despreparo da polícia não são todas as que lhe atribuem agora. As outras, das vítimas da polícia, devem ser apuradas e determinada punição aos responsáveis.
A morte de Santiago tem, sim, caráter diferente, porque não decorre do despreparo ou brutalidade dos agentes públicos encarregados pela sociedade de atender às ordens de governos legitimamente eleitos. É consequência da ação voluntarista de cidadãos que julgaram legítimo acionar um artefato explosivo, letal, para combater o que consideram violência do Estado. Nem sequer se assumem como grupo, ou partido, ou qualquer instituição capaz de substituir a ordem vigente por outra mais inclusiva. Defendem que, pela violência, obrigarão o Estado a reconhecer suas reivindicações (vagas, difusas) e isso mudará o status quo. Condenar os autores da morte de Santiago é condenar esse modo de ação violento e descontrolado que quer se fazer passar por alternativa às soluções democráticas existentes
Os disparados de rojão mudaram, de fato, o status quo da família de Santiago, que perdeu o pai e marido. Dos jornalistas, que se consideram alvo dos manifestantes radicalizados convencidos de que a “mídia” é composta por canalhas e inimigos da população. E do governo, independentemente da filiação partidária, que se vê obrigado a descobrir uma forma de evitar que se repita o assassinato ou a destruição de bens públicos e privados, em escala maior ou em outras circunstâncias politicamente mais delicadas. Mudou também o status quo da direita e outros oportunistas de corte autoritário, que ganharam aliados para bradar por leis repressivas mais severas, argumentando que a anarquia das manifestações mata inocentes e pode levar ao descontrole social.
Nada reduz a necessidade de cobrar da imprensa uma atenção maior às consequências da violência policial. A dependência dos repórteres em relação a informações do governo, a relação às vezes espúria entre certos jornalistas e policiais, a constatação de que muitos manifestantes defendem abertamente a destruição de bens públicos e privados como forma de protesto legítimo, tudo isso contribui para diminuir o empenho da imprensa em ir mais a fundo na cobrança de investigações e responsabilização dos culpados na polícia. Erro grave, que deve ser cobrado.
Mas nada disso faz com que seja menos necessário investigar e cobrar independentemente as responsabilidades no caso do cinegrafista morto. Até porque há muita gente que não vê mal no que houve, chama a morte de “acidente” e anuncia a intenção de prosseguir com respostas violentas à ação do Estado e até mesmo à decisão de prosseguir com a realização da Copa do Mundo. Uma coisa, urgente e necessária, é exigir mais eficiência e responsabilidade do aparelho do Estado, o que vem sendo feito e pode ser feito com mais ênfase. Outra é condenar o voluntarismo e irresponsabilidade de quem romantiza a violência pretensamente revolucionária, sem atentar para suas consequências, dificilmente positivas na conjuntura política que vivemos.
É a outra ponta da falácia de Vladimir (e não só ele): aceitar a crítica de que a imprensa, antes de falar de Santiago, deveria ter falado da polícia, é aceitar como legítima a resposta violenta e individual ao desconforto com a ineficiência e violência do Estado. Isso dá em Black bloc. Mas também dá nos justiceiros do Flamengo. Duas faces reacionárias e anti-democráticas da mesma moeda podre. Como certamente quis mostrar a Mônica, que entrou nessa história como jornalista, disposta a esclarecer, não polemizar, sem a disposição retórica de militante.
Estou contigo Mônica Waldvogel, Sei como é cruel tentar abrir espaço ao entrevistado e ser alvo de más interpretações de quem confunde entrevista com disputa política.
Leia o original no blog do Sérgio Leo