A cerveja Proibida e o limite entre publicidade e apologia

Imagine a seguinte situação: Todos os dias um cantor famoso de música sertaneja entra na casa de milhões de famílias para convencer as  pessoas mais susceptíveis a consumir um determinado tipo de droga. O grande apelo é a uma condição, que parece ser imanente ao produto: a  proibição. A droga em questão é devastadora. Estima-se que cerca de 13 % da população sejam adictos a ela, que é responsável ou está presente em 3 a cada 4 acidentes de trânsito, em quase todos os homicídios eventuais, casos de agressão contra mulheres e crianças. 

proibida

Se você acha essa imagem absurda, saiba que ela existe no mundo simbólico, mas também no real. Trata-se de uma campanha publicitária de uma nova marca de cerveja.  O dublê de cantor  e garoto-propaganda é Leonardo. A droga é o álcool contido na cerveja que ele anuncia. A marca contém o bordão: Proibida.  

Eu não a conhecia e imagino que boa parte dos consumidores brasileiros também não. Passei a conhecer agora, no filmete que está sendo veiculado na TV. Não sei se a cerveja é boa ou não, mas a maneira com que se apresentou foi bem heterodoxa.  A começar pela escolha do nome.

A cerveja, ainda que contenha álcool, não é uma droga proibida no Brasil — a não ser para menores de idade e para quem pretende dirigir. Há pelo menos dez países onde beber uma cerveja pode dar cadeia. Experimente abrir uma latinha nos Emirados Árabes,  Irã ou Kuwait. Vão olhar para você como se você estivesse fumando uma pedra de crack.  

Penso que só faz sentido uma cerveja se chamar “Proibida” num lugar desses: países muçulmanos que baniram o uso e a venda de álcool. Aí, sim, estaria mais do que justificada a alusão a algo que se deve fruir secretamente, dissimuladamente,  que o Estado deve obstar, vedar, impedir,… proibir.

Em 1920 os Estados Unidos proibiram o álcool para, supostamente, combater a violência.  Os engarrafadores de destilados perderam o status de industriais bem-quistos socialmente e passaram a ser caçados como traficantes. O álcool proibido gerou ainda mais  impactos  deletérios do  que produzia na legalidade. A consequência mais importante da Lei Seca foi a organização da máfia em torno do contrabando de bebidas. 

No Brasil do século XXI, fábrica de cerveja não produz droga proibida. Produz droga legal. Em relação aos produtores de estupefacientes ilícitos, os fabricantes de bebidas gozam de uma série de privilégios e franquias que lhes permitem mover suas indústrias à luz do dia,  dentro da legalidade, distribuir a produção por meio de uma rede lícita de comerciantes, gerar empregos e arrecadar impostos. 

Diante disso, pergunto: que vantagem a alusão a algo ‘proibido’ poderia trazer a essa cerveja ? Ou,  de outra forma, que vantagem ofereceria a cerveja a seu consumidor ao aduzir a algo proibido  — a ponto de,  em detrimento de todas as outras,  fazê-lo optar por aquela marca ? 

“O consumidor compra o conceito, a marca, não o produto”, reza o bordão publicitário. E por que ‘Proibida’ ? Obviamente, porque há alguma identificação entre o consumidor e o conceito. Imagine, por exemplo, o efeito poderoso desse bordão sobre o metabolismo de um motorista  alcoólatra.  “Dá uma Proibida aí!”, diria ele ao balconista do bar de beira de estrada na parada para abastecer o caminhão. Nessa situação hipotética, o nome e o conceito que ele encerra estariam plenamente adequados e justificados. 

Mas como os adolescentes vão decodificar a mensagem contida nessa campanha  publicitária ? Para eles, qualquer cerveja é rigorosamente proibida em qualquer situação. Ocorre que, segundo a Pesquisa Nacional da Saúde do Escolar do IBGE, 71,4% dos adolescentes com idade entre 13 e 15 anos já experimentaram bebidas alcoólicas. Mas repare: apenas 15,8% conseguiram o álcool com amigos. Todos os demais, três em cada quatro, obtiveram a droga em lojas, bares e supermercados. A maioria absoluta, em festas.

Não é difícil perceber a vulnerabilidade desse segmento da nossa população. Os mais jovens, que deveriam estar efetivamente sob proteção do Estado e a salvo da drogadição, bebem em qualquer lugar. Muitas vezes, com a condescendência — e até o incentivo descarado — da família. Assim, esses jovens acabam formando uma boa parte da clientela das indústrias de bebidas, que indisfarçavelmente nutrem interesses por esse segmento do mercado. Nas baladas do centro rico das metrópoles, eles consomem desbragadamente os ‘ices’, que são bebidas alcoólicas com gosto de refrigerante; nas da periferia, misturam vodka barata com refrigerante. 

É aí que o apelo da cerveja Proibida cai como uma luva: no seio do público adolescente. Para eles, o álcool se equipara a todos os estupefacientes em sua imanente ilegalidade: é tão proibido quanto a maconha, a cocaína e o crack. O fato de ser liberado para os maiores de dezoito anos não o torna legal nem moralmente aceitável para essa faixa etária. Mas cria uma empatia mercadológica com a ânimo transgressor característico da adolescência.Quanto mais proibida, mais atraente se torna a cerveja para quem não pode, mas vai bebê-la.

À medida em que ganha ao se aproximar do que é ilegal — e com a vantagem de não sê-lo — a campanha da cerveja Proibida também se aproxima do limite tênue entre publicidade e apologia.No campo do direito, isso faz uma enorme diferença. No da publicidade, talvez nem tanto. Mas é no campo da ética que se situa o discussão. E essa dubiedade oferecida por um produto que é uma droga, mas não ilegal, e uma campanha que é publicidade, mas também tem um caráter apologético, que pauta o problema.

Como a publicidade no Brasil é auto-regulada, com a palavra o CONAR.