Se você está assustado com a situação do abastecimento de água de beber em São Paulo, prepare seu espírito para as más notícias que começam a chegar do sistema elétrico brasileiro. O País já não está mais à beira — está vivendo um grande colapso das reservas hídricas que deveriam assegurar a geração e distribuição de energia elétrica.
O que provocou isso ? A falta de chuva certamente contribuiu para que a situação chegasse onde chegou. Mas o que definiu mesmo o cenário foi a manipulação das reservas hídricas com finalidade eleitoral. Para não suscitar o debate sobre a adoção de um necessário e urgente racionamento em ano de eleição, os governantes sangraram os reservatórios muito além do limite da responsabilidade. Senão, veja o que se passa no sistema.
Ilha Solteira é a terceira maior usina hidrelétrica brasileira. Tem capacidade instalada para gerar 3,44 mwh, quase cinco por cento da energia elétrica consumida no País. É gêmea siamesa de outra usina, Três Irmãos, à qual está umbilicalmente vinculada pelo Canal de Pereira Barreto, que interliga as duas represas. Tudo o que acontece com uma, acontece com a outra.
Foi por isso que ambas atingiram juntas o fundo do poço na crise hídrica atual. A reserva dos dois lagos chegou a zero, afetando de maneira mortal a geração. E não apenas isso: Graças à baixa recorde do nível de seu reservatório, Três Irmãos paralisou completamente o tráfego de barcaças ao longo da hidrovia Tietê Paraná. Quase seis milhões de toneladas ao ano deixaram de circular, levando municípios como São Simão (GO) e Pederneiras (SP) a um passo da falência.
No arrasto do colapso desses reservatórios, outras hidrelétricas brasileiras dão sinais de exaustão. Três Marias, próximo à nascente do Rio São Francisco, está se exaurindo dia a dia. Pela primeira vez na história seu nível tangencia 2% da reserva operacional. Se baixar mais 60 centímetros, a única das seis turbinas que ainda geram energia terá que ser desligada para evitar a cavitação. É a abrasão provocada pela entrada de ar no circuito de geração que pode danificar a turbina.
O lago de Furnas, no Sul de Minas, também se encontra exaurido. Está com 11,29% de sua reserva. Apesar do retorno da estação das chuvas, o reservatório ainda perde duas vezes mais água do que ganha. De acordo com o ONS, para cada 124 metros cúbicos de água que entram no lago, 280 escorrem pelas turbinas. Isso afeta um dos papéis mais importantes do imenso lago de Furnas: o de assegurar o fluxo de água para os reservatórios que ficam à jusante (rio abaixo). A grande caixa d’água do Sudeste está secando.
O mesmo papel é exercido pelo reservatório da hidrelétrica de São Simão, na divisa entre Goiás e o Triângulo Mineiro. Da mesma forma, a falta de água ameaça a segurança hídrica dos reservatórios que se situam ao longo da bacia do Rio Paraná, a começar pela exangue Ilha Solteira. As chuvas da última semana permitiram uma pequena recomposição das reservas, que passaram de cerca de 8% para pouco mais de 12%. O problema é que a afluência (volume de água que entra no lago), de 1005 metros cúbicos por segundo, ainda é menor a defluência (volume de água que deixa o lago), hoje em 1113 m3/s.
O que falta é governo
Erra quem atribui a culpa pela situação atual à meteorologia imponderável e a problemas climáticos localizados entre o Sudeste e o Centro Oeste brasileiros. A coisa só chegou onde chegou porque o ONS, o Operador Nacional do SIstema Elétrico, atuou com prodigalidade ao permitir o sangramento das reservas sem adotar nenhuma medida de contenção. O governo contava com a ocorrência das chuvas antes da volta dos apagões, que podem acontecer a qualquer momento por causa da redução da confiabilidade do sistema.
Os lagos exauridos desempenharam bem a tarefa de cabos eleitorais. Trouxeram o País até as eleições sem grandes problemas evidentes. Para conseguir esse intento, o ONS exauriu os reservatório. Atuou como o apostador que, diante de golpes sucessivos de azar, vai dobrando a aposta até perder tudo o que tem. O que se perdeu é muito importante e caro a um Brasil de tantos gargalos estruturais: a segurança elétrica, dada pelo estoque de água armazenada nos lagos da hidrelétricas.
Uma pedra no caminho das chatas
Os rios Grande, Paranaíba e Paraná formam a bateria que faz girar a roda da economia brasileira. Eles são os responsáveis por cerca de 70% da eletricidade produzida no País. Mas sua importância não pode ser medida apenas em megawatts/hora de energia elétrica, pois seu papel na economia é muito maior.
Tome-se o que acontece na bacia do Tietê, rio que desagua no Paraná logo abaixo do vertedouro de Ilha Solteira. Nele há quatro hidrelétricas de porte médio. Elas asseguram o nível ao longo da bacia e a navegabilidade de barcos de grande capacidade de carga. Pela hidrovia passam — ou passavam — quase seis milhões de toneladas de carga por ano. Quase toda a soja produzida em Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul chegava ao Porto de Santos por meio dessa hidrovia.
Os grão eram embarcados preferencialmente em São Simão (GO), onde um terminal intermodal recebia cerca de 8% das commodities produzidas pelo agronegócio. Em Pederneiras (SP), as cargas eram transpostas para um ferrovia. A mercadoria desembarcava então nos porões dos navios transoceânicos atracados no Porto de Santos.
Mas o colapso técnico nas represas do Tietê (os três principais reservatório estão com sua reserva hídrica zerada) acabou interditando o tráfego das barcaças pela hidrovia em maio passado. Em função disso, há mais de meio ano os armazéns graneleiros goianos e o porto intermodal de Pederneiras não movem uma tonelada de carga sequer.
A interdição ocorre próximo à barragem de Promissão, em Buritama, bem no meio do caminho entre Pereira Barreto, na foz do Tietê, e Pederneiras, o ponto final da hidrovia. Com o nível do reservatório de Três irmãos ao rés-do-fundo, as barcaças não conseguem aceder à eclusa por causa do leito pedregoso e raso.
O problema é tão antigo quanto a própria hidrovia. O governo de São Paulo prometeu, meses atrás, contratar uma empreiteira e dinamitar uma estrutura rochosa, aprofundando o leito, o que tornaria a navegação perene. Mas a promessa caiu no esquecimento. O governo estadual continua dando desculpas evasivas para algo que não tem resposta: a inação que poderia ter evitado a interrupção do tráfego de chatas de grande porte.