Sexta e última reportagem da série O Avanço da Maconha. A matéria mostra um perfil do presidente José (Pepe) Mujica, o homem que regulou o consumo e a venda da maconha e transformou o Uruguai no primeiro país do planeta a ter a maconha liberada em todo o seu território. Exibida no Jornal da Band de 12/4/2014.
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Série O Avanço da Maconha: a descriminalização uruguaia
No terceiro episódio da série de reportagens O Avanço da Maconha, o Jornal da Band discorre sobre o que mudou no Uruguai a partir da aprovação da lei que, na prática, libera o consumo e a venda de maconha naquele País. Matéria veiculada em 9 de abril de 2014.
Sem orçamento, Uruguai pode ter que adiar liberação da maconha
Depois de surpreender o mundo com sua nova política de drogas, o Uruguai pode provocar uma frustração planetária ao ter que atrasar a regulamentação da lei que liberou a maconha por falta de previsão orçamentária. Isso obrigaria o governo Mujica a adiar os planos de iniciar logo o cultivo e a comercialização, que devem ser precedidos de autorizações para o plantio e do cadastramento de comerciantes e usuários em pelo menos um ano.
O problema aconteceu porque o governo não enviou ao Congresso uruguaio uma previsão dos gastos que serão necessários para a contratação de pessoal e a criação de um instituto que ficará responsável pelo cadastramento dos usuários e cultivadores, pela produção da erva e pelo registro das farmácias onde será possível comprar a maconha oficial.
Assim como o Brasil, o Uruguai adota mecanismos restritivos de controle de gastos em anos eleitorais, caso deste 2014. Esses mecanismos impedem o governo de realizar despesas e contratar servidores sem que haja previsão no orçamento. Como a lei 19.172 foi aprovada em dezembro do ano passado, não houve tempo para prever, no orçamento de 2014, o dinheiro necessário para a criação do IRCCA (Instituto de Regulación y Control de Cannabis), peça-chave da nova política.
“Aqui no Uruguai existem centenas de leis que simplesmente não são implementadas pela mesma razão, a falta de racionalidade”, diz o deputado Jorge Gandini, do Partido Nacional, que faz oposição ao governo Mujica e também à nova política de drogas.
Gandini explica que, para que a lei passe a vigorar, o governo precisa apenas baixar alguns decretos determinando as providências que entende necessária para fazer a engrenagem funcionar. “Mas tudo deve ser feito de acordo com a Constituição, que impede a contratação de gastos sem previsão orçamentária”, comemora o opositor, que vê na nova lei de drogas um risco para a segurança.
A própria lei estabelece um prazo fatal para a regulamentação: 2 de Abril próximo. “Não sabemos que providências o Presidente vai tomar, está tudo muito obscuro”, diz Gandini.
Uruguai: falar de maconha, só com o rosto coberto
Não há mesmo nada muito diferente do Brasil aqui no Uruguai. A lei de drogas efetivamente não tornou a maconha mais popular nem socialmente aceita. Ontem mesmo, para entrevistar um consumidor, tive que dar um jeito de esconder o rosto dele. A preocupação do rapaz era com o patrão e os chefes. Disse que, se fosse identificado nas imagens, poderia ficar sem o emprego. Muita gente não contrataria um maconheiro no primeiro País do planeta a ter uma política de regulação libertária.
Ontem eu havia dito para vocês que o clima aqui está longe, muito longe do liberou-geral de Woodstock. Não é porque será vendida em farmácias e poderá ser livremente consumida por qualquer cidadão com mais de 18 anos de idade que a maconha se transformou na queridinha dos almoços dominicais em família. Não. Um dos mais exaltados ativistas da época das Marchas da Maconha em Montevideo (houve só duas) não tem coragem de desfilar pelas ruas do povoado onde nasceu, perto da fronteira com o Brasil, com um baseado na boca. “Minha família não toleraria. Meu pai poderia ter um enfarte se me visse fumando um ‘porro'”, que é como chamam o cigarro de maconha aqui. “Sou livre, mas não sou doido de afrontar os velhos”, disse ele.
Só para esclarecer. A regulamentação da lei de drogas ainda está pendente. Os uruguaios vivem numa espécie de limbo jurídico que vai durar até o dia 2 de abril, quando termina o prazo para que o governo baixe a legislação ordinária, os decretos e portarias que vão estabelecer quem vai produzir a erva e como os uruguaios vão ter acesso a ela. A lei só vai vigorar plenamente em meados de julho. Na prática, no entanto, ninguém mais vai preso por fumar ou por manter até seis plantas em casa. Mais do que isso a polícia confisca (porque ainda não há previsão legal para o cadastro dos cultivadores, que a nova legislação exige). A fonte de marihuana ainda é o narcotráfico e praticamente toda a erva é contrabandeada do Paraguai, exatamente como no Brasil.
Não aposte numa relação pacífica entre os maconheiros e seu guru, o presidente Mujica. Ele não gosta de quem fuma — costuma chamar os usuários de “estúpidos”, o que muitas vezes coloca a equipe de assessores afinados com os ativistas em situação delicada. Mujica deixa claro o tempo todo que não quer transformar o Uruguai numa narco-república nem passar para a história como o presidente do liberou-geral. Ao contrário, quer é se livrar do tráfico internacional de drogas — um ótimo motivo, aliás, para passar por cima das cismas seculares o tolerar minimamente o fumacê.
O Uruguai e a maconha livre
Estou em Montevideo para produzir uma série de reportagens sobre a descriminalização da maconha neste País. Cheguei ontem à tarde. E, de cara, fiquei espantado: apesar da milhares pessoas que esperavam o por-do-sol na Rambla, a avenida à beira do Rio da Prata, não havia aqui um clima de Woodstock, como eu esperava.
Vi apenas um casal fumando um baseado na sacada de um apartamento que fica bem em frente à janela do meu quarto de hotel. Ninguém mais. Há mais cheiro da erva no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, numa tarde de domingo, do que havia ontem na capital do Uruguai.
Aprendi pouco até aqui, mas entendi que algo descriminalizado é diferente de algo bem-vindo, aceito ou recomendado socialmente. Talvez resida nisso a esperança de sucesso da estratégia arriscada que o País adotou para tentar vencer o narcotráfico utilizando contra ele as duras leis do mercado e da competição. Agora que retirou a maconha do limbo da ilegalidade, o Uruguai vai poder tratar seus doentes e tentar convencer os que estão saudáveis de que é feio fumar maconha. Como aconteceu com o cigarro no Brasil, que hoje tem metade dos usuários de duas décadas atrás.
Conversei com algumas pessoas nas ruas para saber a opinião delas sobre a nova política para as drogas. É evidente a divisão que o tema provoca. Encontrei pessoas céticas, outras otimistas, mas ninguém apavorado com a maconha livre. Talvez a população tenha entendido a mensagem do presidente Mujica: não é a ressurreição da contracultura, como disse ele ontem a O Globo. É uma medida extrema para conter o avanço do crime organizado.
Veja só que diferença entre o que acontece aqui e o que vai na cabeça dos governantes brasileiros. Em um único ano o Uruguai resolveu o problema do aborto, da maconha e do casamento gay. A adequação a este momento delicado da história, pautado pela fragmentação das identidades sociais e pela valorização das pautas contra-hegemônicas, vai construindo um novo País.
Enquanto isso, o narcotráfico continua corroendo as instituições e desafiando o Estado onde líderes covardes aguardam a aposentadoria para lamentar o que não fizeram a respeito do assunto. Caso clássico do Brasil de FHC e dos EUA de Bill Clinton.
Para encerrar este post, ressalto o abismo estatístico que existe entre o Brasil e Uruguai quando o assunto é o estrago provocado pela criminalidade no bem mais importante que o Estado tutela, a vida. Aqui no Uruguai os crimes de morte acontecem numa proporção de 5,9 casos para cada 100 mil habitantes. No Brasil, são 21 mortes violentas entre 100 mil habitantes.